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O papel da mulher contemporânea


O psicanalista Contardo Calligaris entende da alma feminina como poucos. A seguir, ele fala tudo o que pensa sobre o papel da mulher nos dias de hoje

Eduardo Nunomura (redacao.vocesa@abril.com.br)  10/01/2012
Crédito: Paulo Pampolin
 - Crédito: Paulo Pampolin
É sempre temerário reunir dois homens para falar de mulheres. Mas o que se lerá nas linhas a seguir, esperamos, é uma sincera e aguçada leitura do papel da mulher nos dias de hoje a partir de uma conversa com o psicanalista Contardo Calligaris.
Italiano de Milão radicado no Brasil e cidadão do mundo, Contardo é autor de livros na área da psicologia, já escreveu uma peça teatral e recém-publicou sua segunda obra de ficção literária, A Mulher Vestida de Vermelho e Branco, pela Companhia das Letras. 

Nesta entrevista, o psicanalista lembra que, desde os primeiros dias de vida, meninos e meninas são criados de forma diferenciada pela mãe e isso está na origem da distinção e dos papéis que cada um vai assumir na vida adulta. No caso da mulher, papéis que se dividem em três exaustivas missões: ser ao mesmo tempo dona de casa, profissional e amante. "O que permite viver bem entre três jornadas só pode ser uma real dimensão de paixão. É não estar em nenhuma delas por obrigação", diz Contardo. Leia a seguir os principais trechos da entrevista exclusiva para o Especial Mulheres:

Especial Mulheres - Comecemos pelas aspirações de homens e mulheres...
Contardo Calligaris - Todo mundo diz que a mulher tem uma jornada dupla, mas ela é tripla. Ser mãe ou dona de casa é diferente de ser amante, que por sua vez é diferente de ter vida profissional. Ela tem o desejo de conquistar um reconhecimento público e, para uma grande maioria, de se realizar como mãe. E sabe que ser amante não é uma sinecura, uma coisa automática, tipo às 23 horas sai uma transa. O homem não tem incumbência do lar, com raras exceções, e não acha que ser amante é uma vocação ou trabalho. Claro que há contradições, porque ele tem desejos aos quais já renunciou. O homem casado, diante da mulher e dos filhos, tem pretensão de ser aquele que se sacrificou pelo bem de todos. 

A mulher tem mais chances de se realizar no trabalho?
Não necessariamente, até porque ainda tem uma série de obstáculos para ela. Estamos longe de um mundo no qual homens e mulheres são iguais no trabalho. Mas a mulher tem menos a sensação de ver renegado um desejo para fazer uma escolha profissional. Elas são mais próximas da vida concreta. Os homens vivem a metade do tempo em fantasias, às vezes inconfessáveis, tipo "o que vou fazer quando ganhar na loteria". Isso pode ocupar 30% do tempo deles, e não estou exagerando. A mulher pode até jogar na loteria, mas não vai perder tempo pensando em como gastar aquele dinheiro.

De onde vem essa diferença de mundos?
A causa é feminina. O homem é investido pela mãe da tarefa de ser a realização de todas as aspirações maternas. Essa é uma razão por que ele não para de sonhar. A mulher pode ter outros desejos, mas o fato de sonhar uma vida totalmente diferente não é uma coisa pela qual ela vá perder muito tempo. Ainda hoje as mães tratam meninos e meninas, desde bebê, de forma diferente. Não é porque ela não amaria sua filha, claro que não. Mas com a filha há um registro de rivalidade, que não existe com o menino. Uma das coisas mais complicadas na vida de qualquer mulher é a sua relação com a mãe. Ela não espera da filha que esta seja a realização de todas as suas frustrações. 

Esse registro de rivalidade se reflete no trabalho?
Isso reflete entre as mulheres. Os homens também têm forte rivalidade no trabalho, mas o ciúme entre elas é fortíssimo. Só que é possível fazer disso um tema de reflexão. Acredito nesse suporte cognitivo, pois fará você pegar leve, pensar que não é bem assim. Tudo isso ajuda no convívio. A grande maioria das mulheres dirá que prefere um chefe homem a uma chefe mulher. Em geral, sabe por experiência que vai ser tratada melhor, com mais equanimidade.

Dá para equacionar a tríplice jornada?
O segredo para se dar bem é não estar em nenhuma das jornadas por obrigação. Ter vontade de ser amante, ter desejos sexuais fortes. Ter satisfação nas coisas do lar, na função de mãe. E no trabalho também. Não que a conciliação fique mais fácil só agindo assim. É muito difícil quando uma ou ainda duas das três jornadas são vividas num registro de chantagem. "Ó, meu Deus, esqueci de fazer aquilo." Mas há uma cobrança constante por ser feliz... Acho que não precisa ser feliz nunca. A felicidade é um conceito de marketing, que não corresponde a nada na vida real. 

O senhor já definiu que a mulher do século 21 é aquela que é sem a culpa de ser mulher.
Durante muito tempo a mulher foi culpada de ser mulher. É como se carregasse uma imperfeição. Freud foi muito criticado nos anos 1960, mas, quando você o lê afirmando como se formam psiquicamente os dois sexos, tem-se a impressão de que o sexo feminino foi descrito negativamente, como aquele sexo ao qual falta um pênis. Muitas psicanalistas fizeram essa crítica, mas no fundo, e não que Freud adote essa visão, expõe um ponto de vista majoritário durante muito tempo. O movimento feminino dos anos 1960 teve uma função muito grande para mudar essa percepção. Porém isso não acabou. 

Por que a mulher se cobra por ser mais competente? 
Ela ainda sofre com a herança maldita, por ser "imperfeita". O tempo inteiro tem que mostrar que pode e é capaz. Já o homem, por ser homem, seria aquela coisa maravilhosa da mãe. No meu último livro, a personagem mulher de vermelho e branco, é brasileira que casou com um marroquino de ascendência libanesa, muçulmano. Durante a vida nunca tiveram problemas, porque não eram verdadeiramente religiosos. Mas com os filhos surgem os conflitos. Na tradição muçulmana, você amamenta todos os filhos, mas é importante que os varões sejam amamentados mais. Isso traduz a relação materna com o menino e a menina. A gente esquece de quanto isso é profundamente enraizado. Os homens continuam profundamente machistas, achando que a mulher não pode fazer tudo. E elas têm uma certa condescendência com esse comportamento, porque deixam os homens acreditarem nisso.

É conveniente por parte delas?
É cortesia, gentileza. Ela quer que os homens se sintam felizes. Os homens têm tanto medo de um rato quanto as mulheres. 

Quais as expectativas em relação à mulher hoje?
Há uma expectativa de uma convivência de igualdade entre gêneros. Mas quem tem uma visão mais apurada poderia esperar que as mulheres aproveitassem melhor a diferença entre homens e mulheres. Ela é objetiva e concreta na visão do mundo. Elas são mais ricas como pessoas, corajosas, malucas. O fato de viver três jornadas faz delas pessoas mais interessantes. Em cada jornada, têm a sensação de que não está dando tudo de si nas outras duas. Ela inventa artes de viver que são mais fascinantes. 

No mundo em que a novidade se impõe, a mulher está mais pronta para o novo?
Acho que sim. O homem está inserido em boa parte de sua vida numa fantasia, que, em geral, é repetitiva. A mulher é mais plástica e tem mais facilidade de enfrentar situações diferentes, se adaptar a elas e mudar rapidamente. Isso pode ser uma vantagem muito grande.

O que não se espera mais da mulher?
Pois é, isso qualquer mulher gostaria de saber (risos). A minha impressão é de que as coisas só se acrescentam. Os papéis delas crescem, se multiplicam sem que saiam os anteriores. Mas não se pode olhar essa tripla jornada como se fosse uma cruel imposição da sociedade e, em particular, dos homens. No fundo, a maioria das mulheres não quer renunciar a nenhuma dessas funções. Entre 1994 a 2004, trabalhei em Nova York e meus pacientes eram homens e mulheres do mercado financeiro. A exigência de trabalho era monstruosa e eu ouvia que aquele era o momento da vida delas em que fariam uma pequena fortuna, e aí se permitiriam formar uma família. Mas isso foi dramático porque chegaram num flash aos 40 anos para descobrir que já era tarde. 

A sociedade pode vir, um dia, a perder o viés machista?
Gradualmente é o que está acontecendo. Ao mesmo tempo persiste uma desigualdade, que não tem a ver com a questão de salários, mas é uma desigualdade dos sexos. Seria triste imaginar uma sociedade isonômica. Desde a adolescência, eu nunca imaginava que o mundo mudaria tanto. Se alguém, nos anos 1960, me dissesse que as mulheres estariam no Exército, no comando de empresas ou governando países, eu diria que estaria maluco.
Fonte: Você SA

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